quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Num país racista, educar para as relações etnico-raciais não é uma opção.

Num país racista, educar para as relações etnico-raciais não é uma opção. Ou imagina o que aconteceria se Walcyr Carrasco aproveitasse a falsa polêmica para falar sobre racismo e infância. Bem, se não estão felizes com o que estou fazendo contra o preconceito, tiro o personagem da novela e acaba a polêmica. Eu escrevi Xica da Silva, primeira novela com protagonista negra no Brasil. Isso sim é lutar contra o preconceito.
 
Num país racista, educar para as relações etnico-raciais não é uma opção.
 
Por Charô Nunes
 
Seria apenas uma questão de “traduzir”, de “retratar” a realidade. O mesmo argumento está sendo usado agora para justificar um pai branco raspe o cabelo comprido e natural do filho negro após este ser adotado. Para Walcyr Carrasco, deveríamos estar contentes por sermos minimamente representados através de cotas que pretendem tudo, menos ser inclusivas. Todo o resto não importaria muito. Mais uma vez. Veja, uma novela é apenas uma novela certo?
 
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Não é de se estranhar. Esse é o lugar do negro na novela atual de época onde são incubados racismo, sexismo, cisheteronormatividade, entre outras coisas. É no folhetim que homens brancos fazem negócios e política, mulheres brancas são alguma coisa de alguém (esposas, filhas, namoradas) e nós, não-brancos, ocupamos espaços de subserviência. Somos empregadas domésticas, motoristas, caseiros. Com muita bondade um menino adotado, Pra Walcyr Carrasco deveríamos ser nada menos que gratos obviamente.
 
Sim, é incomum vermos negros serem adotados. Precisamos falar sobre. Por isso a adoção de uma criança negra como Jayminho é mais do que especial. Há alguns anos, impensável. Um passo gigantesco, ninguém discorda de Walcyr Carrasco. Ao mesmo tempo, é insuficiente. Adotar uma criança não dá o direito de dispor sobre seu corpo de outrem. A tensão racial só torma aquilo que é gravíssimo no inominável, Mais uma vez o menino negro é apenas uma peça sobre quem o homem branco, autor ou pai, pode decidir de acordo com seus interesses.
 
Alguns dirão que é um ato de proteção, com o cabelo cortado o menino não “sofreria tanto preconceito” nos ambientes que irá frequentar. Isso pra mim não é amor. É se esquivar de seu próprio racismo. O problema não é aquele que aponta o dedo, que chama de feio, que acha sujo, O problema é o cabelo do menino que significaria uma série de atributos negativos. Não do branco racista que não sabe lidar com a beleza de nossos cachos e crespos. Mais uma vez, isso não é amor. É racismo Walcyr Carrasco.
 
Num país racista, educar para as relações étnico-raciais não é uma opção. É tão necessário quanto alimentar, vestir e carinhar. Parentais, de todas as cores, precisam entender isso. A partir do momento em que um autor se propõe a “fazer algo contra o preconceito”, tem a obrigação de ir além. Nesse caso, abordar os obstáculos (e as delícias) de se educar uma criança negra. Sem isso, descreve um simples ato de caridade que não se sustenta. Walcyr Carrasco fez da criança um objeto de consumo. Um amigo negro, um filho negro. Olha como é bonitinho, se comporta (e até parece) branco!
 
Falta a percepção de que a luta antirracista não pode ser… Racista! Que não basta circunscrevê-la num pequeno intervalo de tempo e espaço. Que não ter sido racista ontem não impede ninguém de ser racista amanhã. Que a pior coisa a ser feita quando confrontados com nosso próprio preconceito é assumir uma postura intransigente e errática. Uma pena. Imagina o que aconteceria se Walcyr Carrasco aproveitasse a falsa polêmica para falar sobre racismo e infância. Apenas imagina.


Fonte: Indigestivos Oneirophanta. Publicado em http://www.portalafricas.com.br/num-pais-racista-educar-para-as-relacoes-etnico-raciais-nao-e-uma-opcao/#sthash.SqLP7Jsr.dpuf

sábado, 19 de outubro de 2013

Esconder o racismo objetiva mantê-lo hegemônico

Esconder o racismo objetiva mantê-lo hegemônico

Flávio Passos*

"Racismo aqui existe, sociedade não admite. 
Existe preconceito, sociedade vê direito! 
Elite branca se olhe no espelho! 
Exigimos justiça! Exigimos respeito!" 
(Mestre Chimbinha e Diego Guerreiro. "Racismo Aqui Existe", 2006). 


Até hoje ninguém me convenceu do porque, nos últimos anos, coincidentemente, tem-se adotado - não obstante toda campanha anti-estrangeirismos na linguagem - o termo "bullying" em substituição, não apenas semântica, mas principalmente, temática, de termos muito mais coerentes com a nossa realidade de violência racial, quais sejam, preconceito, discriminação e racismo. 

Tivesse a literatura, principalmente na área pedagógica, dado conta de ressignificar o termo dialogando com a nossa plural e complexa realidade brasileira, principalmente no que tange as questões dos preconceitos, poderíamos acreditar na não intencionalidade de se invisibilizar a questão racial em tempos de ações afirmativas, políticas de cotas nas universidades e no serviço público, conquistas de marcos legais para a cidadania dos povos quilombolas, indígenas e ciganos, como também para as religiões de matrizes africanas. 
Maurício Pestana

Paradoxalmente, quando se fala no tal do "buuuuu-lllllly-iiiing", a educação das relações étnico-raciais é simplesmente ignorada, voluntariamente esquecida. Aliás, definitivamente, o sentido de tanta importância ao bullying é que ele não é "problemático". Levantar sua bandeira nem causa "mau estar" em ambientes eivados de racismo e preconceitos diversos. É bonito. Tá na moda falar e combater o bullying. No entanto, olhando com mais atenção, ele esvazia o problema ao tratar a prática do preconceito racial, não como crime, mas como um mau comportamento. Demoramos muito pra conseguir a criminalização da prática do racismo pra agora vê-lo transformado em mero "bullying". 

Não há uma tradução exata para o termo, talvez "intimidação" seja a mais fiel. Entretanto, um caráter implícito ao significado do termo e do que a prática dele significa, a repetitividade da intimidação, seria mais um motivo para não se ter havido o esvaziamento da questão racial na educação. A emergência da temática do "bullying" aponta para um contexto de intolerâncias diversas e abrangentes. O outro, por não se enquadrar em um modelo padrão, predominante, passa a ser alvo de agressões e violências físicas ou psicológicas. Porém, no Brasil, o racismo é uma prática cotidiana mais que repetitiva. Este se reinventa, não sendo suprimido, nem com a mobilidade social, nem com o pertencimento ideológico, nem com as conquistas de cidadania por parte de grupos historicamente alijados. E, diferente do bullying, não é uma agressão entre pares, é uma agressão - proporcionalmente mais forte - entre diferentes, porque presumidamente também desiguais.

A ênfase no "bullying" presta o desserviço de apagar a cor e a classe de nosso racismo sócio-racial, nada cordial. É a busca incansável do pensamento hegemônico de desconstruir a memória africana e negra no Brasil. E é como que se a classe média quisesse dizer: "ó, nós também sofremos, e muito, com preconceitos de toda sorte". E, no Brasil pós 10.639/03 e pós-Cotas, a mídia burguesa - de forma militante, a Globo (Jornal e TV), mas também as revistas de grande circulação como a Veja, a Folha e o Estadão -, ao mesmo tempo que impõe um silêncio quanto ao avanço que são as políticas de ações afirmativas, incute essa nova expressão no cotidiano social tentando "naturalizar" o seu uso para, aos poucos, introjetá-lo no ambiente escolar, pelas janelas da tela e das redes sociais. Primeiro, um dos diretores do Jornal Nacional, Ali Kamel, quis convencer não sei a quem de que "Não somos racistas". Depois, o programa "Altas Horas", entre 2009 e 2011, bateu na tecla "anti-bullying". Agora, a temática está disseminada na grade da emissora, especialmente em programas como o Globo Repórter de hoje que veio com o tema em letras garrafais no título. Só alguém que não tenha sofrido ou que não sofra cotidianamente o racismo, o preconceito e a discriminação raciais, cai nessa balela. 

Entretanto, após 10 anos da 10.639/03, a educação brasileira tem resistido a essas manipulações e mantém na formação de seus profissionais a densidade da reflexão sobre as diversas formas de racismo presentes em diversos setores da sociedade, especialmente na escola. O racismo, reinventado, se reconfigura nas suas dimensões estrutural, ambiental, religiosa, territorial, cultural, institucional, midiática, linguística... para desembocar no relacional. E precisa ser combatido em cada uma delas com estratégias específicas e eficazes de superação que pressupõe uma desconstrução do racismo, do pensamento hegemônico, da branquitude. E isso só será possível com a educação plural. Não será o "bullying étnico" que dará conta de contemplar a radicalidade do nosso racismo brasileiro, pois o problema não está nas agressões entre adolescentes na sala de aula. 

O problema do racismo brasileiro se confunde com os quatro séculos de escravidão africana que está na origem desse país e com o projeto de nação que se descortina no Pós-Abolição, quando negros passam a ser um "problema" para a elite e para o Estado. Segundo a professora Josildeth Gomes Consorte, no texto "A questão do negro: velhos e novos desafios" (1991), “a definição do lugar do negro na sociedade brasileira sempre se constituiu um problema para o Estado, para as elites e para o próprio povo” (CONSORTE, 1991, p. 87). 

E, nessa última década, mesmo com todas as mudanças ocorridas na economia e no acesso dos mais pobres a bens e serviços antes restritos a uma pequena parcela da população, a população negra está ainda mais exposta à violência e à morte. Os indicadores críticos continuam apontando - via IBGE, via IPEA, via o Mapa da Violência, dentre outros - que o negro morre mais cedo e de forma violenta. Os movimentos sociais negros históricos já apontavam pra essa realidade há mais de três décadas. Os últimos dados da Pesquisa "Participação, Democracia e Racismo?", do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas) publicados nesta quinta, 17, revelam que 70% das mortes violentas de jovens entre 15 e 29 anos são de negros. Ou seja, ser negro e ser negra no Brasil aí está no nível da sobrevivência, da luta por manter-se vivo, muitas vezes, tendo como algoz o próprio Estado, ao não garantir as políticas básicas de saúde, educação e liberdade de existir e de se manifestar. A política mata, e também o mau atendimento médico, e também a negligência na educação mata ao não garantir a implementação de uma lei que obriga a se trabalhar a educação das relações étnico-raciais e a inclusão dos conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileiras no currículo escolar brasileiro. 

Como todas as demais formas de preconceito, o racismo também não cabe em uma sociedade que se quer democrática e desenvolvida. No entanto, é preciso combatê-lo e não diminuir a gravidade da sua violência, nivelando-a com outras práticas ou, no caso do bullying, diluindo-a em uma gama de outros tipos de agressões. Como bem disse a ex-ativista do Partido Panteras Negras, Ericka Huggins, "esconder o racismo não o faz ir embora". Ou seja, se ao falar de bullying sempre se ausenta a questão racial, sempre se invisibiliza a problemática da intolerância religiosa que existe nas escolas, ou a hostilização de colegas, funcionários e professores contra a presença de cotistas pobres, negros, indígenas ou quilombolas nos espaços universitários, isso não por acaso. Há uma intencionalidade movida pelo próprio racismo. 

Escamotear ou camuflar nossa prática social mais desumanizadora não resolverá nossos problemas, apenas adiará a construção de uma sociedade que respeite a pluralidade, inclusive, a racial. Esconder o racismo objetiva mantê-lo hegemônico, enquanto estruturador de uma sociedade racialmente desigual.

"Tristes, porque esquizofrênicos, trópicos!" 

*Flávio Passos, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, professor de Filosofia e Sociologia no Colégio Carlos Santana, em Belo Campo, BA, e assessor técnico de Promoção da Igualdade Racial na Prefeitura Vitória Da Conquista. E-mail do autor: br2_ebano@yahoo.com.br