Edimara Gonçalves Soares diz que acesso à educação para crianças
quilomobolas é repleto de obstáculos,
alguns intransponíveis (Foto:
Bibiana Dionísio/ G1 PR)
A primeira doutora quilombola do Brasil
acaba de tirar o título, na área de Educação, na Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Edimara Gonçalves Soares, professora da rede estadual de
ensino, defendeu a tese “Educação escolar quilombola: quando a política
pública diferenciada é indiferente” na terça-feira (28). Formada em
Geografia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande
do Sul, Edimara Soares nasceu e viveu até os 15 anos em uma comunidade
quilombola, criada pelos bisavós dela, em Formigueiro, a 68 quilômetros
de Santa Maria. A comunidade não tem nome e é formada por
aproximadamente 60 famílias, que vivem do que plantam e criam.
Sempre crítica à escolarização dos
remanescentes de quilombos, que são comunidades mais afastadas criadas
por escravos que fugiram dos senhores de engenho, na época do Brasil
Colonial, os sentimentos da nova doutora se confundem. “Eu tenho
orgulho, sim. Mas é um orgulho que me faz refletir sobre o quanto a
desigualdade, o preconceito, o racismo institucional são fenômenos
perversos e que não são reconhecidos, dado o mito da democracia racial.
Nós vivemos em um país da diversidade racial, que nós somos todos
iguais… Só que nessas diversidades, as desigualdades não são
reconhecidas, são dissolvidas”, refletiu Edimara Soares.
“A desigualdade, o preconceito, o
racismo institucional são fenômenos perversos e que não são
reconhecidos, dado o mito da democracia racial”
Para a professora, o título tem valor simbólico e concreto para o
grupo que ela pertence. “O fato de escrever uma tese sobre a educação
escolar quilombola, a partir de alguém que é quilombola, que é sujeito
desta história, tem um significado singular de representação. Não é um
estrangeiro dizendo como que é um quilombola, o que ele tem que fazer,
como ele deveria ser. Não é o sujeito de fora narrando os nativos. É
alguém de dentro do grupo que conta a sua própria trajetória e ao contar
essa história, conta também a trajetória de muitos estudantes de muitas
pessoas quilombolas”, explicou entusiasmada.
Edimara acredita que a dificuldade que
ela teve que enfrentar para ter acesso à escola é a mesma vivida pelas
atuais crianças que vivem em quilombos. Ela lembrou que precisava
acordar às 4h30, caminhava em torno de uma hora até o ponto onde pegava o
ônibus.
Ela contou ainda que, em casa, precisava colher bambu e fazer uma fogueira para iluminar livros e cadernos. “A gente não tinha luz elétrica, eu estudava com fogo de chão. Não podia ficar gastando vela ou querosene dos lampiões, porque a gente não tinha também dinheiro para comprar. Toda a trajetória de estudo é marcada por muita luta, muito sacrifício, por muita garra e determinação”. Ela confessou que nas Exatas não ia muito bem e por isso precisava estudar mais. Por outro lado, nas Humanas “era tranquilo”. Foi com a ajuda de uma família de Santa Maria que conseguiu completar o Ensino Médio e ingressar na universidade.
Edimara recordou que foi uma visita do colégio onde estudava à feira de cursos da UFSM que a fez decidir que queria entrar na universidade. “No segundo ano do Ensino Médio eu tinha um norte. Queria entrar ali”.
Depois de desenvolver uma tese de
doutorado, Edimara lamenta ao perceber que os obstáculos são
praticamente os mesmos. “A minha história, quanto estudante negra
quilombola, é semelhante e, em certas situações, idêntica à história de
muitas crianças quilombolas que estão em fase escolar”, afirmou.
Segundo Edimara, as dificuldades são quase intransponíveis. “Às vezes não tem um número significativo [de alunos] para manter a escola, daí esta escola é fechada e essas crianças são enviadas para outro estabelecimento de ensino, distante da comunidade”, exemplificou. Para a professora, isso mostra que as nossas crianças quilombolas, até hoje, não tiveram ainda acesso a educação da forma que lhes é de direito. Ela pontuou ainda que normalmente essas crianças têm um período para estudar, porque chega um momento que deixam de ir ao colégio para trabalhar, para sobreviver.
Este e outros acontecimentos da rotina
escolar das comunidades quilombolas do estado foram abordados e
analisados na tese de Edimara, sob orientação da professora doutora
Tânia Maria Baibich.
Ainda que o Paraná tenha sido pioneiro
na aplicação de medidas específicas para este público, com o
Departamento de Diversidade e o Núcleo de Educação das Relações
Etnicorraciais e Afrodescendência (NEREA), ambos da Secretaria Estadual
de Educação, a ação foi “inócua a despeito de todo o investimento e
esforço que foi feito”.
Isso significa, como explicou a professora, que não se atingiu plenamente os objetivos inerentes à lei federal de 2003 que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira. Havia também o intuito de que os professores articulassem os conhecimentos tradicionais das comunidades quilombolas com o currículo escolar. “Esse é o princípio fundante da educação escolar quilombola”, destacou.
No estado, existem 42 escolas que
atendem comunidades quilombolas, divididas em 11 municípios. Contudo,
para que a lei fosse de fato cumprida, de acordo com Edimara, tópicos
essenciais não foram considerados.
“Faltou uma articulação, efetiva, com as universidades, com as instituições formadoras. Faltou uma parceria com as comunidades quilombolas e também houve uma ausência de ações pedagógicas, de maneira sistemática e permanente, com os professores, no interior destas escolas. As ações foram pontuais, não foram ações sistemáticas”, explicou. Para ela também faltaram investimentos em infraestrutura e em aspectos administrativos, inclusive, recursos financeiros. “É a fartura da falta. Faltam muitas coisas na dimensão de infraestrutura”, complementou.
“Ninguém ensina, o que não sabe. (…) somos produtos de uma educação eurocêntrica, de um currículo monocultural”
Edimara reforçou que a universidade não prepara os acadêmicos,
futuros professores, para trabalhar questões etnicorraciais e de
diversidade. A doutora é clara ao dizer que os docentes não podem ser
culpados pela falha na aplicação da proposta da Secretaria de Educação.
“Ninguém ensina, o que não sabe. Eles,
nós não tivemos acesso a esses conhecimentos na formação inicial,
enquanto professores, porque somos produtos de uma educação
eurocêntrica, de um currículo monocultural, e não foram dadas as
condições necessárias”.
Para que se vislumbre um cenário mais adequado na educação quilombola, Edimara sugere a resolução das problemáticas identificadas e a necessidade de se reconhecer que existe o racismo. “Eu preciso reconhecer a existência deste fenômeno, criar mecanismo para combatê-lo, porque ele está presente de forma muito contundente nas escolas dentro das comunidades quilombolas e nas escolas fora”, assegurou. Ela cita ainda aumento de verbas para aquisição de material e para formação dos docentes.
“Não é algo que vai ser de hoje para amanhã, demanda todo um esforço, uma vontade política e de investimento financeiro”, destacou.
As ações afirmativas
Edimara se diz favorável à lei
sancionada na quarta-feira (29) pela presidente Dilma Rousseff que
determina o sistema de cotas sociais nas universidades federais. De
acordo com a lei, metade das vagas oferecidas é de ampla concorrência,
já a outra metade será reservada por critério de cor, rede de ensino e
renda familiar. As universidades terão quatro anos para se adaptarem.
Atualmente, não existe cota social em 27 das 59 universidades federais.
Além disso, apenas 25 delas possuem reserva de vagas ou sistema de
bonificação para estudantes negros, pardos e indígenas.
“O fato de eu ser a primeira doutora
quilombola do país mostra o quanto nosso país precisa investir no
combate às desigualdades sociais. Ainda existe um abismo,
principalmente, nas questões relacionadas a educação, ainda que os
governos estadual e federal venham investindo em políticas afirmativas e
inclusivas”, afirmou.
Edimara acrescentou que esta
desigualdade é histórica e acumulada, desde 1888 quando foi abolida a
escravidão no Brasil. “A liberdade veio, porém, sem medidas para
integrar a população negra, sem que possibilitasse acesso social e
educacional”, disse Edimara. Na avaliação dela, as cotas vêm para
promover a igualdade de oportunidade.
“O objetivo maior da política afirmativa
é combater e, possivelmente, eliminar o lastro de desigualdades
sociais. Se tu fores fazer uma radiografia das pessoas que hoje estão
nos cursos de mais prestigio na universidade, como Medicina,
Arquitetura, Engenharia, Direito, dificilmente tu vais encontrar, na
mesma proporção, negros e brancos”, argumentou.
http://g1.globo.com/parana/noticia/2012/09/racismo-e-perverso-diz-primeira-doutora-quilombola-do-brasil.html
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